18 maio 2006

«Narrativas» e a Crítica / Texto do Catálogo


















Narrativas

Quando Jean-François Lyotard definiu a condição pós-moderna como um estado de cepticismo face às meta-narrativas, estabeleceu o início de uma série de discussões sobre os vários sistemas narrativos segundo os quais se organizava a sociedade. Analisando as narrativas imperantes de legitimação e emancipação, argumentava que a pós-modernidade era caracterizada, não por uma narrativa única, contínua e homogénea, mas por narrativas menores, multíplices, dispersas, efémeras, que não supunham qualquer legitimação de carácter universal.

Um dos principais pressupostos do pós-modernismo é a contestação dos modos culturais dominantes – do patriarcado ao capitalismo – no entanto, existe a consciência de que não se pode desembaraçar completamente deles. Nada existe fora destas meta-narrativas. A pós-modernidade evidencia-se também pelo desaparecimento do sentido da história. O sistema social contemporâneo perdeu a capacidade para reter o seu próprio passado. Outro sentido não se percebe, por exemplo, nas afirmações do Presidente Iraniano Ahmadinejad, quando pôs, recentemente, em causa a ocorrência do Holocausto… Vive-se um presente ininterrupto. Desaparecido o fio condutor da História, surgem outras narrativas, através de outras culturas, de outras leituras, de outros entendimentos, através de diferentes «estratos de representação» como sugeriu Douglas Crimp em Pictures[1]. O reconhecimento do Outro permitiu a descentralização das normas e a sua diversificação. Foi neste sentido que o conceito de sujeito – o sujeito moderno – foi posto em causa. A obra pós-moderna não é, como refere Hal Foster[2] uma espécie de livro selado pelo autor, com um sentido definido e fechado, mas um texto que pode ser lido como um tecido polissémico de códigos.

Um novo valor foi dado à noção de experiência pessoal e íntima no contexto da pós-modernidade. Só esta valorização justifica a importância que tem sido atribuída às narrativas de ordem ontológica. Exemplo disso são as enumeras biografias, autobiografias e exercícios de auto-representação que abrangem os diferentes cenários da contemporaneidade, e não só a artística. Esta auto-referencialidade reflecte igualmente um comprometimento político. Se o pessoal é político, como se afirmou nos anos 70 do século XX, o que se desejava é que a vida pessoal, privada, a ideologia do sujeito, fossem encaradas no mesmo plano de ideologia. Princípios de igualdade e justiça foram aclamados pelo feminismo quer para o plano político, quer para o pessoal e familiar. Obviamente que esta releitura contribuiu para uma renegociação das políticas de representação e auto-representação.

A partir das décadas seguintes foi-se perdendo, por influência da visão pós-moderna, a ideia de uma arte feminista universal. O género passou a ser compreendido como um processo cultural que se constrói através de certos procedimentos sociais. É nesta perspectiva que se defende não existir uma arte de mulheres diferenciada da dos homens mas antes, tantos argumentos artísticos como personalidades criadoras. Hoje, já não tem sentido actuar segundo estereótipos como o masculino e o feminino. Se a identidade masculina parece associar-se quase sempre a diferentes estratégias de domínio, dinamismo e autonomia; o estereótipo feminino é, por sua vez, associado à passividade, submissão, dependência e expressividade de emoções e de sentimentos para com os outros. Esta bipartição parece não ter qualquer sentido e a presença destas referências em alguns projectos reflecte unicamente a sua instrumentalização como meio de autocrítica.

Hoje, não se fala de Feminismo, mas de Pós-feminismo. O prefixo permitiu a este movimento manter algumas das suas apreensões e teorias anteriores, ao mesmo tempo que passou a incorporar novas considerações. Ampliaram-se e pluralizaram-se temas. Das questões puramente políticas, às ambientais, sociais, culturais, à sexualidade, etnicidade, corporalidade, apenas para citar alguns dos conceitos que se encontram no cerne da exploração das artistas seleccionadas para esta exposição.

Narrativas reúne projectos de 16 artistas, produzidos na sua grande maioria para o espaço da Galeria Sete em Coimbra, que exploram o espaço expositivo de um modo experimental, apresentando diversos suportes que vão do vídeo, à fotografia, passando por objectos, instalações, pintura-colagem e desenho. Esta pluralidade de meios foi o ponto de partida para pensar a igual diversidade temática, axiológica e as contradições que caracterizam a arte contemporânea. Plataforma experimental de trocas entre os projectos e o público, este espaço pretendeu, por um lado, constituir-se como um ensaio de diluição de preconceitos e por outro assumir-se como um campo de desmistificação de discursos.

Directa ou indirectamente, explícita ou implicitamente, de uma forma assumida ou não, as artistas seleccionadas para Narrativas mantêm uma relação com aspectos teóricos do feminismo. No entanto, o conceito não foi o de construir um novo modelo de identidade feminina mas, pelo contrário, o de decompor as imagens convencionais da feminilidade que o discurso da representação sexual patriarcalizou, criando por um lado, uma ontologia independente da intimidade, e por outro, centrando-se na desconstrução das questões de género. A exposição pode mesmo ser analisada segundo este vértice que acaba por confluir num mesmo pressuposto, isto é, uma vontade expressiva de explorar, através do discurso plástico, um dos aspectos mais interessantes da arte contemporânea – o seu potencial crítico.

Ontologias da Intimidade

Dora Moura desenvolveu um projecto que parte do conceito de memória. Não se trata, como refere a artista, da «memória que o tempo regista sobre o espaço», mas das marcas deixadas na paisagem feminina. Uma paisagem narrativa que se manifesta através de diferentes registos prospectados em livros e revistas: da revolução feminina, à maternidade, passando pela sensibilidade, pornografia e contos eróticos. Estas referências – que assumem diferentes formatos: textos e imagens – foram retalhadas em finas tiras de papel. Com elas, a artista teceu retalhos de uma enorme toalha rendada sobre várias telas de diferentes dimensões e orientações que se sobrepõem formando dois enormes puzzles. No seu conjunto, pretendeu fazer alusão a vários aspectos do mundo feminino, inter-textualizando os diferentes aspectos da feminilidade: a beleza, a inteligência, a maternidade, a sensualidade, a sexualidade, a independência. O objectivo foi «criar um efeito ilusório onde esta teia de informações se transforma em renda – quando estamos distantes dela – e – quando nos aproximamos – se re-transforma em trama de informações, de letras, de registos, de cores, de corpos, de texturas… fazendo com que aquilo que é geral – a mulher – se torne particular a cada passo dado na sua direcção».

Vendetta de Soraya Vasconcelos explora também esta vertente caleidoscópica e simbólica da identidade feminina. Trata-se de uma fotografia cuja disposição formal e a sequência que a caracteriza induz o espectador a entrar numa narrativa visual de acontecimentos. O olhar percorre os vários estados de ânimo – admiração, indagação, inquietação, medo – de uma personagem, uma mulher (o capuchinho vermelho), vestida com a Pele de Lobo (um vestido inspirado em modelos dos anos 50 de Christian Dior).

Centrando-se no lado mais obscuro da personalidade feminina, Ana Rito explora, com a sua instalação L’Absence, a noção de silenciação evocando vários momentos – a solidão, a morte. O luto que completa a peça reflecte um monólogo de intimidades que se erotizam pelo jogo de sensações que provocam. Um candeeiro de tecto pintado de preto de onde pendem fitas de cetim, também pretas, foi meticulosamente disposto no chão da galeria. A minúcia revelada pela colocação das fitas cria um ambiente onde o corpo se encena e é encenado.

O silêncio da Imagem é também o elemento central das fotografias apresentadas por Dalila Vaz. São composições pormenorizadamente cenográficas, pelos espaços, pela sua textura, caracterização, marcas do tempo e presenças insinuadas que sugerem uma ambiência determinante para a concepção fotográfica. Le Mariage apresenta-se sob a forma de duas imagens idênticas na sua composição formal e na sua realidade contextual. Segundo a artista «retratam o sentimento perdido da ocupação do espaço por duas personagens que apesar de estarem em posições sociais semelhantes ocupam mundos e realidades diferentes».

Também para Joana Mendonça a passagem do tempo e as marcas deixadas pelo homem e pela natureza nos espaços que ocupa ou invade constituiu o ponto de partida para a criação de um padrão de papel com o qual forrou uma cadeira, uma mesa e uma tela. Objectos facilmente identificáveis, familiares, são uma espécie de extensão do próprio homem.

Sugestionando uma intimidade e uma familiaridade que se torna e quer visível, Raquel Gomes retrata testemunhos do tempo, do espaço e do corpo, os vários objectos que fazem a sua história íntima e pessoal. Um par de brincos, uma caixa de sabonete, um porta-moedas, …

Na linha de uma memória da intimidade Kinga Ogórek executou um enorme saco confeccionado com saquetas de chá usadas. Questões de fragilidade, sensualidade, feminilidade, translucidez, odor estão presentes neste trabalho. Teasack Work traduz-se numa frágil pele de memórias e prazer cujo vertente sensorial é a mais visível e desejada.

Também Susana Pires se debruçou sobre o campo afectivo numa perspectiva feminina e não feminista, como sublinha a própria artista. Sobre-Pele-Rosa é um exercício de revelação do corpo como local de sensações. Um corpo que existe para abraçar outro, esta peça é um permanente convite à participação efectiva e afectiva do espectador. Simbolicamente, representa o feminino enquanto lugar de conforto e ao mesmo tempo privação. Para Susana Pires «vestir o papel de ser mulher é vestir o peso de um corpo socialmente sexualizado». As bolas de madeira envoltas em croché e malha polar que pendem do corpo principal da peça sugerem metaforicamente esse peso.

Na mesma ordem dos afectos, Mónica Faria apresenta um vídeo autobiográfico. Um corpo feminino – a artista – totalmente envolto em fio de lã vermelha, desenrola-se lentamente até à nudez, ao mesmo tempo que ao seu lado, uma dobadoura recebe e se envolve no fio que o corpo lhe oferece. Simbolicamente são questionados os limites do corpo e do objecto, os seus significados e funções, ao assistir-se a «uma dança entre os pressupostos da morte e do nascimento, da preparação do acontecimento e do acontecimento em si, da dor e da libertação, a relação abrangente do significado de fim e princípio».

Ainda no universo da afeição, Ana Guedes criou uma complexa instalação que reúne, num guarda-fato especialmente concebido e adaptado à situação, uma colecção de corações remendados – anteriormente apresentada num contexto e formato expositivo distinto[3] – ferramentas, planos cardiológicos, um cofre de desilusões, frascos, uma mesa de trabalho, iluminação própria, tudo num ambiente concertado e encenado para a apresentação desta peça. Cada coração foi dado a remendar na esperança de não voltar a estilhaçar-se e foi colocado em redomas de vidro encaixilhadas. Trata-se, como descreve a artista, de um processo «indissociavelmente ontológico» pois «a colecção mora no meu armário, o meu refúgio privado, um lugar ao processo compulsivo de remendo».

A conferência dos pássaros é o título de um poema de Farid Uddin Attar, poeta persa do século XII, e também o escolhido por Ana Pérez Quiroga para a instalação que criou especialmente para o espaço desta Galeria. Três abutres foram suspensos e pairam sobre cinco figuras de terracota. Metáfora do nascimento, da maternidade, da regeneração o «abutre comedor de entranhas, alimentando-se de carcaças e de imundices pode, segundo a artista, ser considerado como um agente regenerador das forças vitais, que estão contidas na decomposição orgânica e nos restos de toda a espécie, como um purificador, um mágico que assegura o ciclo da renovação, transmutando a morte em vida nova».

Estratégias para a (des)construção da Identidade

A questão do Género é um dos mais recorrentes entre as artistas contemporâneas. Cinco dos projectos apresentados em Narrativas centram-se especificamente na desconstrução desta dimensão de género através de diferentes exercícios críticos.

O projecto de Manuela São Simão revela preocupações para com a com a guetização feminina, isto é, com a sub-representatividade das mulheres nas artes. A instalação divide-se em dois momentos distintos e axialmente dispostos no espaço da Galeria. Entre ambos, uma linha tracejada estabelece uma relação de reciprocidade e causalidade, mas também de fronteira e afastamento. De um lado, cerca de sessenta telas foram empilhadas enquanto outra foi disposta na parede. Nela, vários nomes de mulheres foram etiquetados e classificados. Do outro lado, um pequeno gueto de caixas simboliza o arquivo de projectos e ideias de mulheres à espera de visibilidade artística.

A instalação de Eva Alves é composta por oito pares de sapatos, quatros femininos e quatro masculinos. Segundo a artista, são homens e mulheres que procuram ser desejados. Os sapatos e botas são revestidos a moldes de látex feitos a partir dos mamilos da própria artista. Os mamilos evidenciam, deste modo, o carácter enigmático dos objectos sobre os quais foram colados, transformando-os em fetiches, em armas de sedução que apelam ao toque e que pretendem “suscitar ambiguidades de desejo e desconfiança quando o observador se imagina a usá-los”. Eva Alves procedeu à reinvenção de um objecto já existente atribuindo-lhe um conotação que pode ser interpretada a vários níveis. Uma leitura possível leva o espectador para o campo das igualdades e hierarquias de género. O número de pares de sapatos femininos e masculinos é o mesmo. Homem, estereótipo da racionalidade, é colocado em equidade com a mulher, lugar-comum da sensibilidade, da sensualidade, do desejo…

Carla Cruz apresenta um projecto fortemente marcado por uma ideologia feminista. Por ideologia, entende-se todo o complexo de práticas sociais e sistemas de representação. Segundo a artista «Could you do for me with your hands...? é uma pesquisa visual sobre a representação feminina». Esta pesquisa foi feita através de um inquérito de rua em Roterdão. Pediu-se aos transeuntes que, respondendo apenas por linguagem gestual, simulassem a representação de uma vagina. Os gestos foram depois sujeito a uma estratégia de descodificação e difusão. Primeiro foram desenhados apenas com linhas de contorno, numa intencional linguagem de simplicidade, alegadamente universal. Depois foram impressos sobre papel autocolante e colocados em casas de banho, e como refere a artista, apenas em casa de banho públicas de várias cidades europeias ao longo de dois anos. Ao colocar os autocolantes nestes não-lugares, o carácter público destes gestos revela-se, ao mesmo tempo são experienciados duma forma íntima. São o público e o privado de uma mesma face.

Também, Flávia Vieira explorou a dicotomia entre as esferas pública e privada e a noção de subordinação universal da mulher. Num estendal de rua foram desenrolados, lençóis, panos de cozinhas e lenços de homem. Em todos eles foram serigrafados imagens e/ou textos. Nos lençóis, torneiras e ralos de lava-loiças; nos panos de cozinha, objectos e frases que, aludindo ao assunto representado, assumem uma conotação de manifesto e ao mesmo tempo simulam um pedido de socorro ou revolta. Ao lado de um espremedor de citrinos pode ler-se “não me espremas mais” ou sob uma batedeira um “não me batas mais”. Nos lenços de homem, a artista optou por serigrafar monogramas de nomes que se deduzem masculinos e pequenos textos recolhidos em periódicos que narram crimes passionais, todos eles de homens que violentaram e assassinaram as suas mulheres. A sensação de violência é acentuada quando se ouve nos auscultadores colocados sobre um banco de cozinha junto à instalação – que o espectador é incentivado pela curiosidade a ouvir –, os sons metálicos de electrodomésticos e facas a serem afiadas.

Finalmente Tainted Love de Catarina Saraiva insere-se num conjunto de projectos que a artista tem vindo a desenvolver sobre a questão dos limites do corpo e da sua percepção. O tema Vanitas, já explorado anteriormente, constitui o ponto de partida do projecto agora apresentado. Na sua origem encontra-se a série Agnosia. A agnosia é uma perturbação que se caracteriza pelo facto de a pessoa poder ver e sentir os objectos, mas não os pode associar ao papel ou função que habitualmente desempenham. O espelho em Vanitas foi sujeito a um processo de agnose. Mantém a sua aparência, mas em vez de reflectir, devolve um corpo material. É um espelho na sua aparência, e outra coisa qualquer na sua função. Um processo semelhante ocorreu em Tainted Love. A instalação é constituída por vinte e três peças. Cada unidade consiste numa moldura em gesso, de contornos florais, arredondados e orgânicos de cujo interior se projecta uma língua de cetim adamascado preto. As relações entre os estereótipos da forma feminina e masculina são aqui descontextualizados adquirindo um carácter enigmático especialmente quanto ao seu significado e função.



[1] Douglas Crimp, Pictures, October 8 (Primavera 1979), pp. 77-87.
[2] Hal Foster, Asunto: Post, Parachute 26 (Primavera 1982), pp. 11-15.
[3] “BlueScreen”, Galeria do Palácio, Porto , 2005.

Ana Luísa Barão
Coimbra, 15 Maio 2006

Críticas à Exposição

MARTINS, Celso, «Mulheres em Coimbra», Actual, Expresso, nº. 1747, 22 Abril 2006, p.47-48.

JURGENS, Sandra Vieira, «Abordagem Feminina», L+Artes, Maio 2006, pp. 86-87.

JURGENS, Sandra Vieira, Perpectiva Actual, ARTE CAPITAL, 05-04-2006 http://www.artecapital.net/perspectivas.php?ref=4

ALMEIDA, Patrícia Cruz, «"Narrativas" na Galeria Sete», Diário da Beiras, 1 Abril, 2006.


[todas as fotografias apresentadas nas entradas relacionadas com esta exposição são da autoria de Ana Luísa Barão
Design Gráfico da Exposição é de Helder Bento
O texto foi publicado em catálogo produzido pela Galeria Sete
www.galeriasete.pt]